Matéria escrita por Amã e Mira Visuais.
O Brasil é o 5º maior produtor têxtil do mundo e a maior cadeia têxtil do ocidente. Esses dados são da ABIT (Associação Brasileira da Indústria Têxtil e Confecção) e nos colocam como principal país da América Latina no setor. A maior parte dessa produção está concentrada na região sudeste e os bairros do Brás e Bom Retiro em São Paulo representam um dos principais pólos do país. Em média por ano, o Brasil produz 2 milhões de toneladas de produtos têxteis e confecciona aproximadamente 6 bilhões de peças. São quase 30 mil indústrias formais distribuídas em todas as regiões, que movimentam bilhões de reais. As lojas de departamento no estilo fast fashion são as mais lucrativas do varejo. Acompanhado à produção em massa está o descarte irresponsável de lixo têxtil. Aqui existem dois pontos: o descarte de retalhos pela indústria e o de peças pelo consumidor. A cadeia de produção têxtil em massa leva em consideração a máxima do lucro: produzir a maior quantidade em menos tempo. Nessa lógica, rebarbas, erros de corte ou costura não precisam ser reaproveitados. É mais vantajoso financeiramente jogar o material fora do que traçar outras maneiras de utilizá-lo. Dessa forma, a quantidade de lixo envolvida é assustadora. Além disso, o final dessa cadeia também é pensado para o lucro capitalista. A maioria das peças de roupa fabricadas são de baixíssima qualidade e possuem validade tanto na estética quanto na durabilidade. A moda serve aos interesses dos mais ricos e funciona na lógica do consumo rápido, o que hoje é tendência amanhã já está ultrapassado. E assim funcionam as lojas de departamento, peças com pouca durabilidade e que serão esteticamente ultrapassadas em pouco tempo. A obsolescência programada aplicada na indústria têxtil.

A reportagem exibida pelo Fantástico no dia 13/02/2022 repercutiu as questões gerais sobre o assunto, onde foram apresentadas as problemáticas dessa indústria e alguns sintomas da degradação do meio ambiente causados por essa produção. Um destaque da reportagem foi sobre o destino de toneladas de lixo têxtil levados para os aterros sanitários que se tornam parte do relevo, como acontece no litoral de Gana e no Deserto do Atacama, por exemplo, onde lixo vindo da Europa e da Ásia é despejado. No cenário do Brasil, todos os dias são retirados 16 caminhões de lixo têxtil apenas da região do Brás. Esses dados sobre o setor têxtil são apenas um demonstrativo sintomático do falimento das estruturas econômicas, políticas e sociais que priorizam acumulação irracional e infinita em um planeta com recursos finitos, apesar de abundantes. Um caminho para a raiz do problema é resgatar historicamente o contexto do pensamento civilizatório, colonial e da ideia de progresso. A moda ainda é ferramenta para perpetuar essa lógica, então para tramar futuros possíveis é urgente olhar para a produção de lixo.
“Ordem e progresso” na bandeira do Brasil nos relembra quais são os princípios fundamentais na construção da nação. Desde que essas terras foram invadidas, a colonização do homem branco matou e destruiu tudo o que não conhecia em nome do progresso. As riquezas foram roubadas, povos indígenas dizimados, pessoas em África sequestradas em massa e a civilização trazida para cá baseada no trabalho escravo, catequização compulsória e genocídio. A dicotomia entre humanidade e natureza nasce desse processo colonial e civilizatório. Passamos a pensar que a natureza é uma coisa e nós, outra, como um recurso à nossa disposição para ser explorado e dominado. Essa separação inverte prioridades, não leva em consideração as dinâmicas necessárias para a vida no planeta e coloca o lucro do capital à frente de todo o resto, mesmo que isso signifique destruição desenfreada. A própria ideia de “humanidade” é uma construção no imaginário coletivo para justificar a degradação. O garimpo, o desmatamento e a devastação da terra negam a pluralidade de formas de vida. É o sacrifício da terra em nome do “progresso”. Esse projeto de sociedade extrativista, de progresso linear, se expressa nas diversas opressões da vida contemporânea. É racista e elitista. No capitalismo, os avanços científicos representam interesses específicos e não as necessidades das maiorias. Na verdade, o acesso se torna privilégio e quem produz não tem direito sobre os frutos do seu próprio trabalho. Territórios empobrecidos e saqueados historicamente ainda hoje são explorados pelas grandes potências. Para as periferias globais é reservado servir como fazenda, depósito de lixo e mão de obra barata, enquanto a minoria bilionária arquiteta formas de colonizar outros planetas. Ou seja, todo “avanço” e “progresso” (que promove ampla devastação da natureza e que afeta a curto e longo prazo principalmente pessoas em vulnerabilidade) é construído pela força de trabalho de pessoas marginalizadas (muitas vezes em situações de escravidão) alienadas de todas as etapas do processo de produção (de onde vem os recursos e pra onde vai o produto final) e serve a interesses do lucro da minoria mais rica e detentora dos meios de produção. Parasitas que sugam as energias do hospedeiro até levá-lo à morte. Para que esse processo aconteça e os subalternos não se rebelem é necessário um trabalho ideológico propagador da ordem para domesticar. Os aparelhos de comunicação em massa introduzem pensamentos em nossas mentes desde crianças nos fazendo pensar que são nossas próprias ideias. Valores e princípios que nos guiarão para uma vida inteira de trabalho em troca de migalhas.

“Sempre foi assim e sempre será”. Sistematicamente somos bombardeados por produções culturais de realismo capitalista, reforçando o imaginário que a menor possibilidade de mudança e quebra da ordem terá como consequência o completo caos e piora das condições de vida, até a destruição completa e extinção. É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. O mercado da moda contribui para perpetuar esse pensamento manipulando o desejo. Para que os burgueses continuem lucrando, precisam continuar produzindo e comercializando. E a ideologia dominante distorce nossas necessidades reais. Somos convencidos a pensar que precisamos estar por dentro das tendências, comprar roupas novas, com determinado tipo de acabamento, setorizada no sistema binário feminino-masculino. O que são as grandes semanas de moda se não um circo cínico do luxo armado por cima de devastação da terra, racismo, escravidão e transfobia? A ideologia que sustenta o capitalismo é tão complexa que se transforma, cooptando debates do nosso tempo para se atualizar. O que temos visto são grandes marcas da moda aderindo a discursos da contemporaneidade sobre diversidade e preservação da natureza apenas enquanto estética para marketing sem fundamento na prática da produção. Mesmo as que parecem mais disruptivas, ainda se escoram no que é comercial e lucrativo no mercado. Qual o verdadeiro impacto de qualquer fala viciada e marketeira se, por exemplo, não existir um olhar para o lixo e continuar a promover ainda mais produção irresponsável de tecido? Como contraponto à essa produção, diversas iniciativas pelo mundo utilizam da pedagogia do lixo como pensamento estruturante. O que se popularizou como upcycling ou reciclagem é uma das propostas de semiótica para produção de novas imagens de moda, o lixo têxtil como matéria prima a ser reaproveitada.

Os grandes donos da comunicação hegemônica da arte detém o consenso do que pode ou não ser moda e a potência de transformação de peças velhas e outros descartes é subvalorizada. A reutilização abre portas para muitos usos. Existem hoje projetos que promovem essa reutilização, utilizando restos de tecido para a confecção de peças de roupa, acessórios, enchimento de almofadas e uma infinidade de possibilidades de criação artística. Isso se concretiza principalmente em nossas coletividades de travestis e pessoas trans. Nós enquanto principais questionadoras das estruturas de gênero e outras limitações da moda, trabalhamos para tomar o protagonismo não apenas enquanto público alvo mas como agentes ativos, de produção de conhecimento. Redes como Ateliê Criativa Vou Assim e o Ateliê TRANSMORAS articulam pessoas trans em diversos territórios do Brasil nessa proposta, para fomentar formação e renda em um mercado voltado para a cisgeneridade branca. Nosso trabalho aqui é o de apontar o problema. Dedo na ferida. Precisamos localizar o problema como estrutural e estruturante, não depende apenas de consumo consciente. Nossas iniciativas apontam para caminhos possíveis de vida e dignidade para corpos dissidentes nesse planeta. O compromisso é seguir engajando o debate e defender as nossas, em união. Potencializar em coletivo para tramar o futuro e tecer possibilidades.
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