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Vou Assim Fashion show leva mais de 200 pessoas ao Museu das Favelas

Excelência trans e a construção de novas imagens na moda marcaram a terceira edição do evento


Por Caê Vatiero


Realizado em 21 de julho, o Vou Assim Fashion Show, maior evento de pessoas trans na moda, atraiu um público recorde de mais de 200 pessoas ao Museu das Favelas. Organizado pelo ateliê criativo Vou Assim, em parceria com o Instituto Brasileiro de Transmasculinidades de São Paulo (IBRAT-SP), o festival marcou o encerramento do projeto Tecnologias Trans: Outras Imagens de Moda, que visa capacitar e profissionalizar pessoas trans e travestis das periferias de São Paulo em corte e costura sustentável, além de promover a construção de novas imagens na moda brasileira. Ao longo de três meses, as pessoas selecionadas participaram de um processo formativo que teve como base quatro eixos programáticos: costura, semiótica da moda, oficinas de figurino e cenografia e direção criativa. As aulas também tinham como objetivo promover  a capacidade de articular questões de gênero e socioambientais nas produções têxteis, atravessando diálogos entre roupa e lixo. “Pra mim, enquanto travesti e uma pessoa transfeminina, foi muito importante no meu processo de transição estar estudando moda, porque eu consegui entender as minhas necessidades e resolver disforias que foram impostas a minha corporeidade. É um dos primeiros dilemas, né. O que pessoas trans vestem se não somos homens e mulheres cisgêneros? O que uma travesti ou um boyceta veste se a moda que tá aí nos mercados não foi feita para nós? Essa é a importância de termos um festival como esse”, afirma a artista fundadora da Vou Assim, a Pimentel.

A terceira edição do desfile teve como tema "Mutação do Futuro", em que 26 modeles apresentaram looks criados por 11 estilistas trans residentes do curso. A temática escolhida coletivamente reverencia o conceito de Transmutação Têxtil, criado por Vicenta Perrotta, à medida que busca questionar quem são as pessoas que pensam e produzem a moda para além da estética europeia e colonial. Todas as peças foram produzidas a fim de refletir sobre as possibilidades de continuidade e o futuro das múltiplas corporalidades — por uma moda que fuja da lógica extrativista, que segrega e mata para existir.


Para Nilo Mendes, designer, desenvolvedora têxtil e instrutora do curso da Vou Assim há três anos, a área de desenvolvimento tem tido pouca mão de obra, sendo majoritariamente ocupada por mulheres cis mais velhas. “No curso da Vou Assim eu percebo que a galera não só está interessada na parte da criação, mas também de botar a mão na massa, entender o material e o que está fazendo, fazer parte realmente do processo de construção. É muito gratificante ver os resultados, os desfiles e as peças incríveis”.



Ao todo, 350 pessoas foram impactadas direta ou indiretamente pelo projeto, entre mulheres trans, travestis, pessoas transmasculinas e não binárias. O impacto inclui as categorias de alimentação, transporte, modelagem, professores, espaços e coletivos. “Quando você pensa em pessoas transmasculinas não-binárias, que roupas essas pessoas estão vestindo? Qual mensagem elas estão passando? Nessa parceria com a Vou Assim Assim nós conseguimos que 50% das pessoas impactadas com esse projeto fossem pessoas transmasculinas. Trazer essas pessoas e todas essas linguagens plurais para dentro da moda é fazer com que esse ambiente seja possível para nós. Mesmo quando estão tirando tudo da gente, a gente ainda é capaz de produzir algo como o Vou Assim Fashion Show”, afirma Kyem Ferreiro, coordenador geral do IBRAT-SP. O festival foi realizado em parceria com o Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais (VAI 2), da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, e conta com apoio do Instituto de Desenvolvimento e Gestão (IDG) e do Museu das Favelas.



Excelência trans e travesti

A terceira edição do Vou Assim Fashion Show combinou moda, arte, música, empregabilidade e resistência, batendo seu recorde de público. O evento começou com uma sequência de shows de artistas do coletivo Calanga Paredão, que fomenta a arte trans, preta, periférica e dissidente. DJ Kewarah, Calanga, Darlene Maravilha, Mc JL, Luä Ayo Ayana e P4dl0ck fizeram apresentações que exaltaram a excelência trans e travesti, o amor e a luta por uma existência digna. A programação também contou com a roda de conversa “O que pode um grupo de pessoas trans organizades?”, com a presença de figuras importantes no ramo da moda. Na ocasião, Vicenta Perrota destacou que o sonho não é mais ser uma estilista cis: “É um evento trans acontecendo no museu em um domingo, isso é tecnologia. A gente não tá aqui fazendo moda ou arte só pra vender, até porque a gente não tem herança. Isso é uma tecnologia de vida para nossa comunidade. É ref de ref, é a nossa ref!”, afirmou a artista. Dayane Moura e Michelle dos Caralhos, também presentes na discussão, reafirmaram a importância de reconfigurar uma estética não colonizada e não embranquecida. Dayane destacou que “a partir do momento que estamos falando de outras corporeidades, nossa estrutura é diferente do que qualquer pessoa pode ver”. Já Michelle foi certeira ao pontuar que “podemos estar em todos os espaços e nos entender como pessoas livres. Não existe certo ou errado, existe a perfeição que a gente já é”.



Mutação do Futuro

O potencial de criação, a relação entre cenografia,  figurino e personagem, a presença de do pensamento contemporâneo sobre o papel da moda nas estruturas de gênero e a criticidade da cadeia de produção da roupa, assim com importância de se trabalhar com o lixo têxtil foram os conhecimentos que nortearam o grande desfile da terceira edição do Vou Assim Fashion Show. As escadarias do Museu das Favelas receberam os talentos travestigêneres, a reverência à ancestralidade e a transmutação. Para além de um curso de moda, o projeto Tecnologias Trans tem como objetivo impactar estruturalmente a comunidade, a fim de gerar autoestima, autonomia e coletividade — tão essenciais para uma população que vive fora dos holofotes. “Para as pessoas trans e para as pessoas negras, a primeira coisa que é apresentado pra gente é aquilo que ninguém quer fazer. A pessoa te oferece uma merreca e acha que tá fazendo uma contribuição para a comunidade. Por isso é tão importante quando a gente consegue promover um ambiente em que essas pessoas podem explorar a própria arte, a própria expressão e construir uma autoestima a partir disso. É poder colocar essa expressão na rua, no seu dia a dia”, pontua Kyem Ferreiro. O resultado desse processo foi visível na passarela, onde diversos looks destacaram elementos usados em rituais de religiões de matriz africana. A reverência aos orixás e entidades da umbanda deixou claro que esse corpo-território também deve pertencer à comunidade trans e travesti, seja na moda ou dentro do terreiro. Ayo Tupinambá, por exemplo, foi uma das pessoas convidadas a desfilar com um look pensado por seu irmão de santo, Yu Ohtsuki. Para ela, o fato de ter sido um evento pensado e produzido por pessoas trans foi o que mais a deixou à vontade para aceitar esse convite. “Ao falar de Ayô, falo sobre potência, escolho as cores vermelho e branco para compor sua roupa, são as cores da malandragem, é também uma grande homenagem a duas entidades muito preciosas da Ayô, Maria da Flor, a baiana mais malandra que eu conheço, ela chega com o seu chapéu de palha, sua bebida adoçada no mel, e seu pé de dança caloroso; e Maria Mulambo, que tem uma gargalhada de aquecer o coração e um cuidado com as pessoas trans que eu pude ver de pertinho”, disse o estilista. 



Das dez pessoas residentes do curso, algumas já tinham familiaridade com corte e costura, enquanto outras nunca haviam pregado um botão ou costurado a barra de uma calça, como é o caso de Caetano Lars: "eu tinha uma grande necessidade de me instrumentalizar para poder fazer o meu trabalho. Faço faculdade de artes cênicas e, sendo o único transmasculino do departamento, minhas referências sobre moda não existiam. Foi durante o curso que, de repente, eu estava vendo meus amigos fazendo roupa para eles mesmos. Isso aumentou minha autoestima. Eu chegava de boné e bermuda, sentava na máquina e fazia um vestido, sabe? Meu look tem uma saia para um transmasculino”. No desfile, Juca Martins, foi quem vestiu a roupa de Caetano. "Nunca me imaginei nesse lugar e nem teria desejo e coragem se não fosse nessa configuração. Sei que participei de um momento muito importante, não de forma individual, mas sim coletiva e histórica. Ver produções tão incríveis de pessoas tão potentes, e poder vesti-las e me sentir lindo, olhar para as outras pessoas que estavam compondo esse momento e vê-las lindas. Foi um grande presente poder desfilar pela primeira vez com as primeiras produções de um amigo, tão potente e incrível. O desfile é uma etapa de um processo intenso, do qual ele pôde compartilhar um pouco comigo, seus aprendizados e desafios, costura por costura, fio por fio. Esses compartilhamentos não têm preço", comentou Juca.








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